terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Morte de Zé das Neves





Na pele sulcada de rugas
Plantaram sementes de ira
Flores regadas a sangue
Viscejam em dor e agonia


Não me venham falar
Das estatísticas vazias
Nem que a balança de pagamentos
Equilibra as nossas vidas


Só sinto a crueza das calçadas
Quando olho pasmo a miséria
Enfileirando-se mal comportada
Pedindo troco no sinal


Só sei que o silêncio
Das vozes arrancadas
Grita em desespero
Nas barricadas de pneus


A vida desvairada
Qual uma ópera trágica
Ensaia sagas anônimas
Invisíveis para tantos


O congestionamento irrita a classe média
Que anseia chegar em casa e sonhar
com o dia em que serão burgueses
Cruzando os céus em helicópteros


A fumaça negra
Escreve frases de protesto
Mulheres grávidas de futuro
Choram a morte no presente


Zé das Neves atravessou a pista
Um carro importado qualquer
Levou sua alma embora
Deixando a carne lacerada para trás


O morto teve seus quinze minutos de fama
No programa policial da TV
Com crianças curiosas
estudando suas chagas


Teve direito a discurso indignado
Do reporter abutre justiceiro
Teve close e trilha sonora
Teve entrevista de especialista


Que criticou o motorista que fugiu
Que culpou o morto descuidado
Que denunciou a truculência da manifestação
Que mostrou o descaso das autoridades


Eu vendo o corpo de Zé das Neves
Entre uma garfada e outra
De tedioso arroz com feijão
Um espectador da morte alheia


Que pensa na própria morte
Na morte das vozes
Na morte do futuro
Na morte de Ze das Neves

Um comentário:

  1. Muito impactante!!! Toda arrepiada!!! Me fez pensar nas diversas mortes às quais Zé das Neves foi submetido, ainda em vida... Na morte de sua dignidade, de seus sonhos, de sua própria humanidade! A morte biológica foi o desfecho de sua morte em vida!
    Narah

    ResponderExcluir